14 de mai. de 2015

O amor não é complicado, as pessoas é que são...


Ele não depende disso ou daquilo. Ele não é passageiro, não busca completar-se, pois nasce completo em si. Não necessita reciprocidade. O amor simplesmente acontece e não há porquês. Não há momento, nem motivos e seu antagonismo é o vazio e não o ódio. O ódio, por sua vez, também pode ser amor. Tamanha é a abrangência de seus sentidos e reações.

As pessoas sim complicam o amor.

O ser humano é complexo e despeja turbilhões de responsabilidades sobre Ele. Responsabilidades que não o cabem, sérias ou banais, burocráticas... Colocam preço, atribuem valor, o transformam em moeda de troca, em mercadoria, em contas a pagar. O carimbam em papéis cheios de assinaturas, em tratados constituídos... Fazem dele política.

O amor não está atrelado à vida, nem à presença física. Ele não depende de contato algum. Ele não precisa do tempo nem do conhecimento, nem ao menos de intimidade ou afinidade. Ele não requer explicações. Ele não exige lucidez.

Cobranças, dependências, culpas, saudades, desejos, necessidades, disputas, vaidades... São sentimentos ou condições humanas mutáveis, alheios ao amor, passíveis de controle e de extermínio. 

Mas o amor permanece. Ele é maior que o ser, por isso não nos possibilita controlá-lo, quantificá-lo, modificá-lo, diminuí-lo, decliná-lo... 

É como estar debaixo d'água, quanto mais se debate, mais se afoga. E que morte! 

Ele nos eleva. E não resta outra alternativa, senão desfrutá-lo.

Todos os outros sentimentos fazem de nós "Realidade", o amor nos faz "Divindade".


Vivian Guilhem

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5 de mai. de 2015

Quando eu tinha um rádio na cabeça...


Na minha infância as coisas não eram assim tão fáceis. Não como deveriam ser para uma menininha mais sensível que todas as outras. Meu pai até podia nos obrigar a ir cedo pra cama, mas ele não podia obrigar a minha cabeça a parar de falar. E ela até que fazia um falatório bem simpático, falava de um mundo fantástico, paralelo, onde eu era uma guerreira que montava um hipogrifo, e que salvava outras crianças de seus pais igualmente bravos, e que aquela identidade de menina de cinco anos, era somente fachada pra esconder meus segredos heroicos.
Naquela época o silêncio não era meu amigo, tampouco a penumbra. Formavam um casal muito sarcástico. Eles percebiam o meu medo e zombavam de mim. Criavam rostos, formas e sons tão assustadores que se faziam reais ao meu entendimento. E nada mais assustador que os barulhos que o silêncio faz! Eles acabavam por impulsionar em mim a súbita coragem de largar minha cama, atravessar a casa toda e correr para o quarto da minha mãe, que me acolhia de tanta dó. Isso quando eu tinha a sorte de não ser expulsa pelo meu pai.
Ah mas o que eu nunca vou esquecer é aquele rádio... Havia dentro da minha cabeça um rádio que não me dava opção de "liga ou desliga", nem de mudança de estação. Era sempre o mesmo ridículo jogo de futebol, narrado freneticamente por um locutor acelerado, ou um diálogo incessante entre homens, quase impossível de compreender. Felizes as vezes em que eu sim, me desligava dele e conseguia desviar minha atenção, ignorar e dormir. Foi tanto que reclamei do meu rádio interno que minha mãe marcou uma consulta ao doutor. Ele nos explicou sobre a possibilidade de alguns cérebros mais sensíveis, captarem ondas de rádio. Foi então que entendi que eu podia ser mais "sensível" que as outras pessoas. Concluí também ser provável que a identidade secreta de guerreira alada fosse verdadeira e não conversa fiada da minha cabeça tagarela. Procurei não pensar muito sobre os barulhos e rostos...
Aos poucos meu rádio interno foi ficando fraco, algumas vezes, mais tarde, cheguei a escutar uma música, que logo desapareceu. Por certo meu rádio era à pilha e se acabou...

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14 de abr. de 2015

a escritora, a cozinheira e o descobridor.

(Uma história quase verídica sobre Gertrude Stein)



Alice virava o marreco de um lado para o outro na travessa, dava-lhe umas palmadas, sacudia, regava...

-Hoje eu preciso muito de você, não me decepcione! Exclamava ela à ave, já toda depenada, envolvida em temperos verdes que delicadamente colhera em sua horta. Neste dia o preparou com maior perfeccionismo que o de costume. A noite será de encontro com ilustres amigos, de paladares exigentes.

Entre eles estão grandes artistas, pintores, escritores e intelectuais do momento, de várias partes da Europa, e a reunião deverá ser bem sucedida, como sempre. O Marreco com chucrute que prepara é o favorito de sua companheira, a célebre escritora Gertrude Stein.

Alice preocupada, pensava em Gertrude, que não andava bem. Acabara de fazer um mês que sua obra, escrita em conjunto com a companheira, fora publicada, “Autobiografia de Alice B. Toklas”, e ainda não fora criticada por Herbert Lowell, afiadíssimo crítico literário americano, conterrâneo da autora.
Lowell costuma ser categórico e um tanto perverso nas críticas que publica para o jornal "C. Times" a respeito de Stein. Suas alegações sempre a colocaram como uma “impostora”, contestando sua genialidade.  Segundo ele, sua maneira surrealista, abstrata, quase "cubista" que tanto a diferenciou dos demais, nunca o envolveram nem o convenceram e não se sustentarão por muito tempo. A seu ver, o modo da “escrita automática” de Stein chega a ser vulgar e a tendência é que toda sua forma experimental se esgote e acabe caindo em lugar comum, vendendo-se para o mercado comercial, como já acontecera gradualmente em suas últimas publicações. “Gertrude Stein, cada vez mais vem caindo na centralização e falsificando os princípios modernistas da literatura”, escreveu.
Suas críticas sempre irritam Gertrude, embora não admita. E Alice tenta distraí-la e de toda forma, agradá-la.

As duas senhoras estão acostumadas a  receber visitas de amigos famosos em seus jantares, dentre eles, Juan Gris, artista plástico Madrilenho. E também um dos melhores amigos de Gertrude, o grande Picasso. Além de  Hemingway, seu aprendiz. Mas hoje, especialmente, terão a presença de Cecil Beaton, jovem fotógrafo britânico, famoso por suas fotografias conceituais. Cecil deseja capturar o mundo de Gertrude, retratar sua história, o companheirismo, desvendar o mito da relação amorosa não convencional. Cecil considera a imagem romântica das amantes subversiva e isto o fascina. Gertrude por sua vez, busca causar algum impacto feminista com a repercussão dos retratos. 

-O marreco não ficou dos melhores. Diz Alice á companheira, que tenta entreter-se com os cães.
                     
-Tenho certeza que ficou maravilhoso como sempre. Aposto que esses dois irão adorar! Diz Gertrude, dirigindo-se aos dois cãezinhos que se esgueiram do sofá atrás de um grande osso, atirado por sua dona.

Os cães são também suas paixões, hierarquicamente seguidos da escrita e depois, de sua doce Alice, que finge não se incomodar com o segundo lugar nesta disputa.

Gertrude é ao mesmo tempo complacente, apaixonada, ácida e fria. Masculina, dum semblante altivo e magistral, aparenta por vezes um general e noutras, um trovador apaixonado. Alice tem a aparência de uma cigana, de postura  serena e forte, possui marcantes traços femininos os quais redesenha com uma maquiagem sutil. Adora preparar pratos que inventa na cozinha, ao mesmo tempo em que cuida de todos os interesses de sua amada com a maior disciplina e organização que o trabalho exige. E como ama Gertrude! Sua dedicação é impecável e por vezes idílica.

As pessoas as conhecem e as respeitam, ainda que o preconceito exista. O peso do tabu carregam com facilidade.  A marginalização vinda da sociedade não as incomoda, ao contrário, Gertrude quer mesmo é subverter. Sabem se impor, vivendo com todo mérito e pompas do mundo machista de sua época.

As duas mulheres conheceram-se em Paris, na exposição de Matisse, amigo em comum que as apresentou. Mas foi num jantar oferecido pelo amigo, que Alice preparou o tão falado marreco com chucrute, prato típico da culinária Alemã, o qual aprendera com a esposa germânica de seu tio, e assim ganhando de vez o tão enrijecido coração de Gertrude Stein. Esta já havia notado atributos na exótica Alice que lhe interessavam, e com "certas intenções", convidara para sua secretaria particular, afinal, são poucas as mulheres capazes de despertar seus cinco sentidos em uma única noite. Alice aceitou de imediato, considerando que seria curioso trabalhar ao lado de uma mulher misteriosa, tão cheia de peculiaridades e de tamanha genialidade. Com pouco tempo, veio o amor. E  esse enlace profissional/matrimonial perdura então por 25 anos, desde a noite do perfumado marreco com chucrute.

Com a chegada dos convidados, a noite corre descontraída e o sucesso do Marreco é como sempre certeiro. Cada garfada de Gertrude é como um estímulo ao coração. E nesta orgia gastronômica, todos os presentes parecem igualmente fisgados.

Alice sorri satisfeita.

Cecil, o fotógrafo, está encantado com o cenário moderno e comtemplativo da casa das duas senhoras. Nas enormes paredes de altos pés direitos, decoram suntuosas telas de artistas famosos, muitos ali mesmo presentes, também em "carne e osso". As obras são de valores inestimáveis que chega a doer-lhe as têmporas observar cada detalhe ou tentar atribuir preço à coleção. De qualquer forma, Cecil está atento aos gesto e movimentos de suas futuras modelos e à decoração da casa, que auxiliam no traçar de um perfil do casal de lésbicas a fim de escolher os melhores ângulos, valorizando tamanha idiossincrasia de imagens.

Gertrude chega a esquecer por alguns instantes sua ansiedade com relação à crítica de Rowell, afinal, a noite foi brindada por elogios a seu trabalho e à sua pessoa.

Os dias percorrem ativos na frenética Paris. Cecil empolga-se cada vez mais com a nova empreitada e aos poucos seu ensaio vai tomando corpo e ganhando contextos dos mais diversos, que surpreendem até o próprio fotógrafo. O desvendar da personalidade de Gertrude Stein e Alice B. Toklas acontece diante de sua lente, como se retirasse pouco a pouco os véus da obscuridade. As fotos vão se desenvolvendo num misto de simetria e dismetria, satisfazendo intensamente o jovem. Em cada curva, traço, pose e movimento das protagonistas, Cecil sente como se descobrindo um tesouro artístico valioso.
Encerra seu trabalho com vanglória. E a certeza de que possui um dos grandes feitos de sua vida. Sente-se como um Picasso da fotografia.

Gertrude e Alice percebem, intrínseco nos retratos, algo particular que vai além de suas próprias imagens, a essência de uma terceira personalidade em conjunto, há muito esquecida. Alice acredita ser isso o Amor, Gertrude enxerga como a purgação do tempo, dos anos vividos, ali em suas imagens reunidas, Gertrude vê a própria vida. É isso que essas duas velhas mulheres formam juntas, o retrato da própria Vida.

Aquele descobrimento é de uma epifania tamanha, que Gertrude nem se importou com a crítica ruim de Lowell. O problema era mesmo com ele, faltava-lhe com certeza alguém para se preocupar ou para se amar. Naquele momento nada lhe arrancaria o brilho dos olhos, nem mesmo uma crítica ruim ou um marreco sem gosto.


Vivian Guilhem - abril de 2015
Imagem: Cecil Beaton
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