14 de abr. de 2015

a escritora, a cozinheira e o descobridor.

(Uma história quase verídica sobre Gertrude Stein)



Alice virava o marreco de um lado para o outro na travessa, dava-lhe umas palmadas, sacudia, regava...

-Hoje eu preciso muito de você, não me decepcione! Exclamava ela à ave, já toda depenada, envolvida em temperos verdes que delicadamente colhera em sua horta. Neste dia o preparou com maior perfeccionismo que o de costume. A noite será de encontro com ilustres amigos, de paladares exigentes.

Entre eles estão grandes artistas, pintores, escritores e intelectuais do momento, de várias partes da Europa, e a reunião deverá ser bem sucedida, como sempre. O Marreco com chucrute que prepara é o favorito de sua companheira, a célebre escritora Gertrude Stein.

Alice preocupada, pensava em Gertrude, que não andava bem. Acabara de fazer um mês que sua obra, escrita em conjunto com a companheira, fora publicada, “Autobiografia de Alice B. Toklas”, e ainda não fora criticada por Herbert Lowell, afiadíssimo crítico literário americano, conterrâneo da autora.
Lowell costuma ser categórico e um tanto perverso nas críticas que publica para o jornal "C. Times" a respeito de Stein. Suas alegações sempre a colocaram como uma “impostora”, contestando sua genialidade.  Segundo ele, sua maneira surrealista, abstrata, quase "cubista" que tanto a diferenciou dos demais, nunca o envolveram nem o convenceram e não se sustentarão por muito tempo. A seu ver, o modo da “escrita automática” de Stein chega a ser vulgar e a tendência é que toda sua forma experimental se esgote e acabe caindo em lugar comum, vendendo-se para o mercado comercial, como já acontecera gradualmente em suas últimas publicações. “Gertrude Stein, cada vez mais vem caindo na centralização e falsificando os princípios modernistas da literatura”, escreveu.
Suas críticas sempre irritam Gertrude, embora não admita. E Alice tenta distraí-la e de toda forma, agradá-la.

As duas senhoras estão acostumadas a  receber visitas de amigos famosos em seus jantares, dentre eles, Juan Gris, artista plástico Madrilenho. E também um dos melhores amigos de Gertrude, o grande Picasso. Além de  Hemingway, seu aprendiz. Mas hoje, especialmente, terão a presença de Cecil Beaton, jovem fotógrafo britânico, famoso por suas fotografias conceituais. Cecil deseja capturar o mundo de Gertrude, retratar sua história, o companheirismo, desvendar o mito da relação amorosa não convencional. Cecil considera a imagem romântica das amantes subversiva e isto o fascina. Gertrude por sua vez, busca causar algum impacto feminista com a repercussão dos retratos. 

-O marreco não ficou dos melhores. Diz Alice á companheira, que tenta entreter-se com os cães.
                     
-Tenho certeza que ficou maravilhoso como sempre. Aposto que esses dois irão adorar! Diz Gertrude, dirigindo-se aos dois cãezinhos que se esgueiram do sofá atrás de um grande osso, atirado por sua dona.

Os cães são também suas paixões, hierarquicamente seguidos da escrita e depois, de sua doce Alice, que finge não se incomodar com o segundo lugar nesta disputa.

Gertrude é ao mesmo tempo complacente, apaixonada, ácida e fria. Masculina, dum semblante altivo e magistral, aparenta por vezes um general e noutras, um trovador apaixonado. Alice tem a aparência de uma cigana, de postura  serena e forte, possui marcantes traços femininos os quais redesenha com uma maquiagem sutil. Adora preparar pratos que inventa na cozinha, ao mesmo tempo em que cuida de todos os interesses de sua amada com a maior disciplina e organização que o trabalho exige. E como ama Gertrude! Sua dedicação é impecável e por vezes idílica.

As pessoas as conhecem e as respeitam, ainda que o preconceito exista. O peso do tabu carregam com facilidade.  A marginalização vinda da sociedade não as incomoda, ao contrário, Gertrude quer mesmo é subverter. Sabem se impor, vivendo com todo mérito e pompas do mundo machista de sua época.

As duas mulheres conheceram-se em Paris, na exposição de Matisse, amigo em comum que as apresentou. Mas foi num jantar oferecido pelo amigo, que Alice preparou o tão falado marreco com chucrute, prato típico da culinária Alemã, o qual aprendera com a esposa germânica de seu tio, e assim ganhando de vez o tão enrijecido coração de Gertrude Stein. Esta já havia notado atributos na exótica Alice que lhe interessavam, e com "certas intenções", convidara para sua secretaria particular, afinal, são poucas as mulheres capazes de despertar seus cinco sentidos em uma única noite. Alice aceitou de imediato, considerando que seria curioso trabalhar ao lado de uma mulher misteriosa, tão cheia de peculiaridades e de tamanha genialidade. Com pouco tempo, veio o amor. E  esse enlace profissional/matrimonial perdura então por 25 anos, desde a noite do perfumado marreco com chucrute.

Com a chegada dos convidados, a noite corre descontraída e o sucesso do Marreco é como sempre certeiro. Cada garfada de Gertrude é como um estímulo ao coração. E nesta orgia gastronômica, todos os presentes parecem igualmente fisgados.

Alice sorri satisfeita.

Cecil, o fotógrafo, está encantado com o cenário moderno e comtemplativo da casa das duas senhoras. Nas enormes paredes de altos pés direitos, decoram suntuosas telas de artistas famosos, muitos ali mesmo presentes, também em "carne e osso". As obras são de valores inestimáveis que chega a doer-lhe as têmporas observar cada detalhe ou tentar atribuir preço à coleção. De qualquer forma, Cecil está atento aos gesto e movimentos de suas futuras modelos e à decoração da casa, que auxiliam no traçar de um perfil do casal de lésbicas a fim de escolher os melhores ângulos, valorizando tamanha idiossincrasia de imagens.

Gertrude chega a esquecer por alguns instantes sua ansiedade com relação à crítica de Rowell, afinal, a noite foi brindada por elogios a seu trabalho e à sua pessoa.

Os dias percorrem ativos na frenética Paris. Cecil empolga-se cada vez mais com a nova empreitada e aos poucos seu ensaio vai tomando corpo e ganhando contextos dos mais diversos, que surpreendem até o próprio fotógrafo. O desvendar da personalidade de Gertrude Stein e Alice B. Toklas acontece diante de sua lente, como se retirasse pouco a pouco os véus da obscuridade. As fotos vão se desenvolvendo num misto de simetria e dismetria, satisfazendo intensamente o jovem. Em cada curva, traço, pose e movimento das protagonistas, Cecil sente como se descobrindo um tesouro artístico valioso.
Encerra seu trabalho com vanglória. E a certeza de que possui um dos grandes feitos de sua vida. Sente-se como um Picasso da fotografia.

Gertrude e Alice percebem, intrínseco nos retratos, algo particular que vai além de suas próprias imagens, a essência de uma terceira personalidade em conjunto, há muito esquecida. Alice acredita ser isso o Amor, Gertrude enxerga como a purgação do tempo, dos anos vividos, ali em suas imagens reunidas, Gertrude vê a própria vida. É isso que essas duas velhas mulheres formam juntas, o retrato da própria Vida.

Aquele descobrimento é de uma epifania tamanha, que Gertrude nem se importou com a crítica ruim de Lowell. O problema era mesmo com ele, faltava-lhe com certeza alguém para se preocupar ou para se amar. Naquele momento nada lhe arrancaria o brilho dos olhos, nem mesmo uma crítica ruim ou um marreco sem gosto.


Vivian Guilhem - abril de 2015
Imagem: Cecil Beaton
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10 de mar. de 2015

Por quê mentimos?

Uma análise superficialmente profunda sobre a mentira...




Hoje me deparei com essa montagem do “Pequeno Príncipe” no Facebook, um trecho bem significativo do filme, que é baseado na obra de Antoine de Saint-Exupéry sobre o garoto que veio do Planeta B-612. Adoro esse livro! Acontece que esse diálogo e a lógica da raposa me fizeram vir à tona algo que eu pouco pensava: Por que afinal, mentimos?

Gostaria de poder responder, mas isso é fácil e difícil ao mesmo tempo. Mentimos para causar boa impressão, esconder segredos, conseguir um emprego, conquistar alguém, encobrir um amigo, causar danos ou amenizá-los, nos satisfazer... Ou seja, as respostas são inúmeras. Mas, a reflexão pode ir muito além disso. Qual a razão da mentira em si? Qual sua essência? Por isso resolvi buscar não exatamente as respostas, mas as conseqüências que isso traz e ainda, tentar tirar algum proveito deste “mau comportamento”.


Traçar um perfil da personalidade humana mitomaníaca como um todo acredito ser tarefa quase impossível, e seguir qualquer teoria sob ponto de vista de qualquer filósofo ou psicólogo levaria anos de estudo. Portando preciso de hipóteses pessoais, pois é o mínimo que posso ter. O que eu mesma, como pessoa, imagino ser essa essência que torna o ser humano inerentemente capaz de mentir.


Além de algumas pesquisas técnicas aqui e ali...


Bem, parto do princípio que dizer somente a verdade é tão ofensivo quanto escondê-la. Imaginem só se fossemos verdadeiros o tempo todo? As relações seriam desastrosas, portanto, partindo dessa premissa, concluímos que a mentira faz parte de uma relação saudável, claro, se usada com moderação. Verdades e mentiras na medida certa fazem parte da boa convivência humana. Mas afinal, qual é a medida certa? Difícil saber. Mas há de se analisar que ela, a mentira, nem sempre é tão mentirosa quanto parece. Se não sabemos exatamente o que é a verdade do mundo, que dirá o que não é!


A mentira tem razões que a verdade desconhece e muitas vezes ela diz mais a respeito de quem somos do que podemos enxergar. Essas inverdades que contamos, são capazes de revelar medos e inseguranças, dados e características de nós mesmo que desconhecemos.


Além do mais, mentimos muito mais para nós mesmos do que aos outros. Segundo estudos de universidades americanas, nossa mente está criando dissonâncias cognitivas entre nossos pensamentos contraditórios o tempo todo, ou seja, a cada instante acontece um “bug” em nosso cérebro.


Vou explicar com um exemplo: Quando somos obrigados a executar tarefas das quais não gostamos nosso cérebro começa a buscar razões interessantes pela qual estamos praticando aquilo e o trabalho começa a ficar realmente mais interessante. Qual é o problema disso? Afinal, se o cérebro transforma tarefas monótonas em coisas bacanas como se fosse mágica, qual é a desvantagem? Nenhuma, a não ser o fato de que ele faz isso, na maioria das vezes, sem o nosso conhecimento. E, quando você pensa sobre o assunto, a lista de situações em que esse “bug” do cérebro pode estar nos controlando só vai ficando maior.


Não consigo chegar à conclusão empírica nenhuma quanto a razão da pratica em si. De qualquer forma, penso que da mentira não há escapatória, quanto muito, podemos tirar proveito dela em nós e prestar mais atenção nos conflitos internos. Talvez isso nos aponte alertas pessoais, pedidos de mudança vindos de nossas mais profundas necessidades. Nada como o autoconhecimento!


Enfim, não adianta mentir pra você nem pra mim, você está mentindo o tempo todo, e nem sempre se dá conta. Entretanto, esse fato apenas significa que somos, nada mais, nada menos, que seres humanos. 
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6 de mar. de 2015

Ser mãe ou não ser...

A possibilidade da escolha.



Você ainda não é mãe e as vezes entra em crise por isso? Não tem absoluta certeza do que quer? Sente que já está cansada pra cuidar de um bebê? Planeja tanto que acaba empurrando a situação? Fica esperando o parceiro certo e percebe que e o tempo está passando e o sonho ficando distante? Ou simplesmente não quer e as vezes se sente culpada ou pressionada? Então saiba que você não está sozinha!

Hoje li uma reportagem a respeito das mulheres estarem cada vez menos dispostas a se tornarem mães. Ao que me parece, a natalidade no Brasil está ficando mais tardia, ou declinando de vez. Talvez esse âmbito não seja apenas nacional, mas mundial. Todavia, ser mãe continua sendo o desejo da maioria das mulheres, ainda que não realizem de fato. Ali dentro de cada uma mora a sementinha do instinto maternal. E mesmo não tendo a certeza absoluta de ser um desejo pessoal ou social, o medo de um  arrependimento futuro, ou mesmo da solidão, pode ser impulsionadores de grande parte das mulheres  que engravidam.

Lembro-me de quando estive perto de completar 30 anos e ficava terrivelmente deprimida ao ver mulheres grávidas ou mães com bebês pequenos. Dentro de mim, naquela época, gritava o medo de estar "velha" demais para isso e mais pra frente, vir a me frustrar. Tenho uma teoria de que aos 30 anos toda água parada dentro de nós começa a “bater na bunda”, e as auto-cobranças surgem mais fortes  que nunca.

Começam as reflexões derrotistas do tipo: “cheguei aos 30 e não tive filhos”. Como se fosse a idade limite. Sabemos que não é assim, e que isso é apenas uma fase e passa. Os tempos realmente mudaram e pelo que dizem as estatísticas há cada vez mais mulheres tendo bebês depois dos 35, 40 anos. E numa idade mais madura elas parecem estar mais preparadas para esta tomada de decisão.

Mas ser mãe não é mesmo uma escolha fácil. Para muitas mulheres nunca foi uma escolha, simplesmente aconteceu. Aí não tem outra saída a não ser estar mesmo preparada. Mas quando passamos dos trinta sem essa experiência começamos a ponderar, a pesar tantas coisas na balança da vida que muitas vezes acabamos por desistir.

Os motivos que levam as mulheres a “empurrar” a maternidade costumam ser  a carreira (embora eu não concorde que seja um empecilho), a falta de estabilidade financeira, a desestrutura amorosa/familiar. Mas o medo do desconhecido ou simplesmente a falta de vontade são mais comuns do que chegamos a imaginar. A liberdade de escolha possível às mulheres nos dias de hoje encorajam a negação do que antes era considerado praticamente uma obrigação.

Não há problema algum em não querer ou não poder ser mãe. Não seremos menos mulheres que as outras por assim decidirmos. Essa é uma escolha ou uma consequência de cada uma e deve ser sempre respeitada. Na prática ainda existe um preconceito camuflado, geralmente partindo de dentro da própria família até o âmbito social. Infelizmente esse tipo de banalidade é bem comum, até, ou principalmente, entre mulheres.

Minhas reflexões são um tanto profundas e paradoxais quanto ao desejo em si. O que exatamente é querer ser mãe? As vezes pode ter uma conotação um tanto egoísta, afinal não escolhemos ser mães apenas para povoarmos o planeta, ele já está bastante povoado. Esse é um anseio pessoal, é íntimo, e pode estar ligado a uma satisfação do próprio ego. A vontade escondida por detrás de outros desejos, muitas vezes triviais. Por isso há de se perguntar qual o valor exato da maternidade pra cada uma de nós e se isso de fato é uma boa escolha, livre de qualquer indução por pessoas ou convenções. Há outra vida em jogo que necessita ser cuidadosamente planejada e merece ser respeitada antes mesmo de existir.

Se esse é um sonho real, liberte-se de medos, dependências, culpas ou desculpas e encare o novo.
Acredito que segurar um filho recém nascido nos braços é a grande catarse da vida de qualquer mulher e eternamente compensador.

Oxalá um dia, nós as "não-mães", tomemos a melhor decisão! E caso seja em favor da continuidade, que a vida nos brinde com a possibilidade e que não seja tarde demais.



Texto: Vivian Guilhem
Ilustração: Caroline Bonne
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